Perfeitos Desconhecidos

     Imagine a seguinte cena: o homem chega em casa, joga roupa, carteira e celular na cama e vai para o banho. Após um tempo, ouve o barulho da esposa no quarto. De repente…tóim!!! Paralisa! Gela! O coração dispara e a boca seca! Enxerga a mão da mulher se aproximando lentamente do celular. Então, ela desliza os dedos pelo whatsapp e lê suas mensagens. Tóim!!! Desespero total! Ainda ensaboado, ele apronta a maior correria e apanha a toalha. Enrolado, abre a porta de supetão e descobre a mulher estirada na cama, janelas fechadas, mãos sobre os olhos: 

     – Nossa, a enxaqueca me pegou feio, hoje. Tive duas reuniões que valeram para o resto do mês. Tomei um analgésico e tudo o que quero é dormir.

     Ele volta a sentir o ar entrando nos pulmões e o coração desacelerando. A testa desenruga e ele não pode deixar de se sentir grato pelos olhos cobertos da esposa, que não enxergaram o seu pânico. Já controlado, veste o pijama e enfia o celular no bolso. Dá um beijo na mulher e diz:

     – Descansa! Vou ver um filme.

     Liga a TV e zapeia, lembrando-se do pânico de alguns minutos atrás. Sorri e, agora, tudo lhe parece sem sentido. Pega o celular e relê as conversas. Nada demais. Apenas extensos diálogos com uma ex-colega de faculdade, por quem tinha sido muito apaixonado. Encontraram-se, por acaso, na semana passada e, desde então, o papo corria solto. Nada demais, conversas corriqueiras, diz para si mesmo. Mas, então, por que o coração na garganta quando pensou na possibilidade da esposa mexer no celular? As peças do quebra-cabeças não estavam se encaixando.

      Vamos, agora, cortar para a seguinte cena:

     Sete amigos de longa data se reúnem para um jantar. Em uma brincadeira, uma das esposas propõe compartilhar um com o outro, na mesa, o conteúdo de cada mensagem de texto, e-mail e ligações que recebem. No jogo, muitos segredos começam a se revelar, provando que nem todos se conhecem de verdade.

     Esse é o tema do filme italiano “Perfeitos Desconhecidos”, que expõe a ampla influência do celular, na vida atual. Mas, muito além disso, o aparelho serve como pano de fundo para revelar de que modo a pessoa com quem dormimos pode ser um completo mistério na nossa vida. E vice-versa.  Pense um pouquinho: sua vida é um livro aberto ou algumas páginas estão vedadas à leitura? E, em contrapartida, seu cônjuge, filhos, amigos…você os conhece REALMENTE? Como diz a própria sinopse do filme, fica evidente que todos temos três vidas: uma pública, uma privada e uma em segredo.

     Cultivamos segredos desde a mais tenra infância. A título de sobrevivência, aprendemos a contar boas mentiras, aquelas que, teoricamente, não fazem mal a ninguém e, além, salvam o sujeito de se meter em enrascadas. Desenvolvemos funções e papéis e nos adaptamos a eles e, nessa adaptação, podemos pecar – como diz a Bíblia – por pensamentos e palavras, atos e omissões. 

     A tecnologia potencializa essa situação. Tratamos o celular como nosso amigo mais íntimo, o detentor de todos os nossos disfarces e segredos mais profundos.  No aparelho estão contidas nossa vida pessoal, profissional, financeira, social. E o protegemos com senha, para diminuir o perigo dessa caixa preta revelar o não-dito, nosso verdadeiro “eu”. 

     Vida dupla em maior grau – aquela que esconde os mistérios mais escabrosos -proporciona um jorro de adrenalina muito agradável mas traz, também, desconforto e culpa. Além de propiciar uma dispersão maciça de energia, que poderia ser focada na direção de algo mais saudável. Não é à toa que muita gente em conflito tem enxaquecas, insônia, dores de estômago, amigdalites etc.

     Na medida em que confere anonimato ao sujeito, a tecnologia, ainda, permite o disfarce da realidade, mascarada por gente jovem, bonita e feliz, em suas férias na praia. Sem problemas, desde que se saiba que se está mentindo para si mesmo. Com problemas, quando a mentira vira realidade fantasiosa, na qual o próprio mentiroso acredita. Aí, já dá pra começar uma psicoterapia porque – me escute! – vai complicar!

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