Entre Picos e Vales – Reflexões Sobre a Doença, a Morte e o Luto

Acabo de sofrer uma perda irreparável: minha mãe foi morar com o Pai Maior. Em meio a tanto sofrimento, dúvidas, questionamentos que nunca serão respondidos, tenho tirado algumas lições dessa situação irreversível:

1) A mãe é nosso primeiro objeto de amor. É através dela que subsidiamos as nossas relações posteriores. E se dói tanto perdê-la é porque, durante nosso percurso, ela nos ensinou a amar;

2) Sentimo-nos órfãos em qualquer época da vida, independente da nossa idade quando ela parte. Obviamente, é muito mais duro quando isso ocorre na infância ou adolescência, pois teremos que construir nossa personalidade um tanto quanto desamparados;

3) Perdemos o colo de mãe. Ainda que seja um colo imaginário, quando já somos adultos. Na verdade, no entardecer de nossos pais, nós é que lhes daremos aconchego, literalmente falando. Porém, no simbólico, ainda precisamos de um cafuné materno;

4) As perdas irreparáveis acontecem a todos. Conta-se que uma mulher perdeu seu filho e foi ter com Buda, solicitando-lhe um medicamento que o curasse. Compadecido, Buda lhe dá a seguinte instrução: “Procura uma simples semente de mostarda preta, porém só deves receber de uma casa onde nunca tenha entrado a morte, onde não tenha ainda morrido pai, mãe, filho nem filha, nem irmão, nem irmã, nem escravo nem parente”. Assim ela fez. Porém, ao indagar sobre as mortes, não encontrou ninguém que não houvesse sofrido alguma perda. Então, a mulher sentou-se à beira do caminho e pôs-se a meditar: “Quão egoísta sou eu em minha dor! A morte é o destino comum de tudo quando vive. Porém, neste vale desolado há um caminho que conduz à imortalidade – aquele que elimina de si todo egoísmo”. Então, enterrou seu filho e refugiou-se na espiritualidade;

5) Tomar forças a partir da espiritualidade é fundamental para nosso equilíbrio emocional. Acreditar que essa vida não é o fim e que não somos deste mundo – mas acreditar mesmo, com todas as forças! – torna os dias mais belos e os despertares mais promissores. Sim, existem flores em meio ao caos!;

6) A ajuda e o apoio dos parentes e amigos é imprescindível, tanto durante o processo de doença, como no velório, como bem depois: “Como você está hoje?”; “Parece impossível acreditar, sabe, mas vai doer menos. Vai passar…”; “Olha o chocolate que eu trouxe pra você!”; “Força, Deus sabe de todas as coisas!”; “Vou dar uma passada na sua casa e te fazer uma visita”; “Trouxe esse livro pra você ler, sobre como lidar com o sofrimento. Vai te ajudar muito”. Descobri que essas não são frases feitas nem atitudes banais. Ao contrário, tem sido uma das forças de sustentação nesse período cinzento;

7) O luto tem que ser vivido ampla e profundamente: reviver, rememorar, conversar sobre, rever as fotos e… chorar…chorar…chorar….Se algo não é elaborado no momento propício, deixará dívidas futuras;

8) Você alterna sentimentos pelo ente querido: em um momento, acha que foi o melhor que poderia ter acontecido, em vista de tanto sofrimento. Sente que a vida prossegue e que o futuro te reserva coisas lindas; depois, vem a culpa, por achar que está se esquecendo da pessoa que perdeu e que isso é injusto, com você e com ela. Então, no dia seguinte, você sofre em dobro, para pagar o que não sofreu no dia anterior. Posteriormente, a raiva irrompe: como aquela pessoa que você ama/amava tanto, aquela pessoa lúcida, forte, determinada, teve o descaramento, o atrevimento, a audácia de…morrer?! Em seguida, acha que está delirando, alucinando e agarra-se ao trabalho. Aos filhos. Ou a qualquer outra coisa que te desvie a atenção e te ancore no chão. Dessa forma, os dias se seguem, entre picos e vales, e os estados de ânimo, também;

9) Você está dentro do CTI e pensa: “Deus é onipresente, então também está aqui”. Mas, observando aquele lugar, que mais se parece com o inferno na Terra, você duvida do alcance Dele. Em meio a ruídos de respiradores e monitores, odores diversos e frascos múltiplos, você mira seu ente querido e suplica ao Senhor para que te sinalize que Ele ocupa todos os espaços;

10) Você percebe anjos, em forma de gente, atravessando seu caminho: é a psicóloga do CTI que te vê transbordando em lágrimas e te convida para um atendimento; é a enfermeira que, olhando profundamente nos seus olhos, segura sua mão e diz: “eu sei o que é isso, meu pai já ficou aqui”; é a técnica de enfermagem que, com um simples ajeitar de travesseiros, aumenta o conforto e a saturação do oxigênio; é a médica espetacular, que mescla afetividade com resolutividade… Mas, também, encontra profissionais de saúde que, através do uso potente de mecanismos de defesa, já se blindaram contra o sofrimento alheio e enxergam seu ente querido como um número de leito e mais um corpo a ser invadido por sondas e cateteres. A esses, dirijo meu olhar de pena. Queira Deus que – um dia, quem sabe? – possam descobrir a importância da compaixão e da empatia;

11) Por anos e anos, tive medo de velórios e cemitérios. Não o medo infantil, de assombrações e fantasmas. Mas o medo velado que ecoava em meu coração: “Quando chegará a minha vez de enterrar um ente querido? Ah…quisera que nunca chegasse…” De repente, esse medo acaba, morre junto com a pessoa que você acaba de entregar a Deus. E você já pode conversar sobre essa passagem para o lado de lá e assistir filmes sobre o tema, sem se exasperar, porque já não dói como doía antes;

12) E, por fim – será? – você vira um ser humano comum e mais humilde. Sim, você já foi tocado profundamente por “ela” e não poderá entregar a ninguém sua semente de mostarda preta. Então, passa a concentrar-se nas coisas verdadeiramente importantes da vida, pois descobriu, na pele, a finitude da mesma. Não adia mais seus projetos para quando se aposentar…não guarda tanto dinheiro que, talvez, nem chegue a gastar…escolhe o melhor hotel da praia para passar suas férias, pois, afinal de contas, você estará vivo amanhã? Lidando com a morte, você aprende a lidar com a vida, na sua amplitude e na sua plenitude. Afinal, só se vira árvore quando se deixa morrer a semente.

Dedico esse texto à minha amada mãe, Terezinha, que me ensinou em vida, me ensina na morte e para além da mesma…

IVANA ROCHA

escrita

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6 Comentários

  1. André Erick

    Ivana,
    Oi, vc escreve tão bem, poderia dizer facilmente que D Terezinha ficaria orgulhosa de vc. Todavia, seu amor e cuidado, sua força e humanidade, é que deviam enche-la de orgulho-alegria pelo ser humano que ajudou a formar.
    Quando a saudade dela apertar, pede ao Bom Deus que faça um carinho nela pr vc!
    Abraço,
    P. A

    • escrita

      Que lindo, Padre Erick! Isso me alenta: um carinho feito por Deus! Muito obrigada! Seu apoio e presença tornaram tudo mais suave.

  2. Érika Meireles Teixeira

    Dividir tudo isso com tantas pessoas reafirma a pessoa maravilhosa que vc é, humana e generosa. Terá sempre minha admiração. Um abraço fraterno, e siga sua jornada com fé.

    • escrita

      Querida Érika! Nossa família te ama muito! Eternamente grata, não só pelo seu apoio atual, como, também, por nos acompanhar há tanto tempo e com tanta eficiência e carinho. Grande beijo no coração!

  3. Vanilza

    Ivana,
    Compartilho a mesma dor que você está sentindo. Temos algumas coincidências: a minha se foi há um mês. ..Sou psicóloga. ….E minha maezinha também se chamava Terezinha…
    2017 foi o ano que mais fui a velórios na minha vida…E saia de lá com o coração apertado. .Pelas pessoas que ali sofriam e por um pensamento (que teimava em vir….E eu teimava eu esconde-lo): “ia chegar minha vez” (e de alguma maneira eu sabia que estava próximo ). As vezes eram pessoas que eu nem conhecia. Ia pela consideracão a família. E chorava….. Minha irmã sempre me perguntava: você nem conhecia o morto, porque chora? E eu respondia: choro por quem fica, porque a dor deve ser forte demais! E hoje tenho propriedade para falar isso!
    Hoje choro por mim…que fiquei! 🙁

    • escrita

      Nossa, Vanilza! Realmente, partilhamos nossa dor, nossa profissão e o nome de nossa mãezinha. Sim, choramos, porque, como dizia o poeta John Donne, “a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano”.

      Mas…sofremos porque nos ensinaram a amar e esse é o maior aprendizado que alguém pode ter.

      Não somos desse mundo, estamos aqui de passagem. Mas, enquanto aqui estivermos, que possamos colocar bastante vida nos nossos anos.

      Grande abraço!

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