A lei de Gérson e o Superego de Freud

Há alguns dias, conversava com a dona de um restaurante e fiquei boquiaberta com os episódios por ela relatados. A senhora em questão sabe que administrar o próprio negócio requer investimento maciço, seja de dinheiro, de elaboração de estratégias ou de tempo. Trabalhando de domingo a domingo, ela, junto com a família, garante uma sobrevida longa ao empreendimento, mesmo no Brasil da crise. Mas o que me surpreendeu nessa conversa foram os exemplos de clientes fiéis à Lei de Gerson. Para quem não sabe, Gerson foi um futebolista brasileiro que protagonizou um comercial de cigarros, no qual ele bradava, enaltecendo o produto anunciado: “É preciso levar vantagem em tudo, cerrrrto?” Levando ao pé da letra o conselho gersoniano, os clientes da minha interlocutora são mestres em se servir de torresmo, linguiça e outros e, ao pesar o prato, juram, de pés juntos, que tais alimentos não se enquadram na categoria de petiscos. Na opinião deles, é comida normal e, portanto, devem pagar mais barato.

Também é comum o caso de clientes que se servem, primeiramente, de churrasco e, depois, voltam às guarnições, tentando encobrir a carne com arroz, feijão e salada. Ao chegar à balança, depõem o prato sobre aquela que acusa o valor mais baixo. A dona os interpela:
– Senhor, é nessa balança aqui.
O cliente bate na testa e diz:
– Nossa! Esqueci que pus churrasco.

Hum…”esqueci”…

E o que dizer das crianças que derramam no prato todos os sachês de maionese, ketchup e mostarda e se distraem com seus desenhos na massa vermelho – amarelada? Cadê os pais desses pirralhos que não impedem tamanho desperdício?

E por falar em pais, o que será que pensa a mãe que esbraveja porque a filha – uma menina alta de 12 anos – não pode brincar no playground destinado às crianças de até 9? Fuzilante, a mãe dispara:
– Minha filha vai brincar aí, sim!

Enquanto a proprietária me contava essas e outras coisas, minha boca abriu e me esqueci de fechá-la. Meus olhos se arregalaram e eu me pus a pensar: onde estão a educação, a gentileza e o senso crítico de pessoas que deveriam, teoricamente, dar o exemplo, uma vez que tiveram acesso aos estudos? Será que mais cultura define educação ou sabedoria? Evidente que não! A educação, a elegância interior pressupõem um conceito mais amplo de respeito e preocupação com o outro. A sabedoria…ah!…já, essa, demanda disponibilidade para o aprendizado diário que a vida nos proporciona. E não é muita gente que, nessa ainda sociedade escravagista, se dispõe aprender.

​ Muito já se falou sobre o “jeitinho brasileiro” que, dependendo, pode contar a nosso favor. Mas que torna-se cruel quando se lesa o outro porque se acha a última bolacha do pacote, o filho único da mãe viúva e os reis/rainhas da cocada. ​

Nós, brasileiros, não passamos pela dureza das guerras, que resultam nas vidas e edificações destruídas e nos espasmos estomacais da fome. Portanto, o inconsciente coletivo acha legítimo brincar com sachês de mostarda, sem refletir que cada um deles, por menor que seja, envolveu uma ampla gama de funcionários, de tempo, logística e investimento financeiro. De novo, falta respeito pela coletividade.

E o respeito pela coletividade passa diretamente pelo conceito daquilo que Freud denominou de Superego. De acordo com a segunda teoria freudiana do aparelho psíquico, esse termo caracteriza o conjunto das forças morais inibidoras que se desenvolvem sob a influência da educação durante o processo de socialização. A socialização primária ocorre na família. Porém, se a criança não é conduzida por um adulto maduro e responsável, que lhe impõe os devidos limites, a tendência é que passe a vida dando pequenos – ou grandes – golpes e se julgando superior e sábio frente à aparente idiotice alheia. E, em não se tendo um Superego eficaz, a perpetuação das mesmas condutas se fará presente nas gerações futuras. Teremos, então, o alastramento do ditado “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, entranhado maciçamente na classe política brasileira. E esses mesmos dribladores dos valores morais sairão às ruas para exigir o fim da corrupção. Seria cômico, se não fosse trágico!

É altamente incongruente não alinhar nossos pensamentos, sentimentos e ações, seja no público, seja no privado. Portanto, para quem sofre de agenesia (Falta de desenvolvimento, desde a vida embrionária, de um órgão ou tecido, segundo o dicionário) de Superego, é vital o firme limite imposto, seja pela dona do restaurante, seja pela justiça, seja pela polícia. Seja por mim ou por você. E sempre resta a esperança de que essas instituições governamentais não se percam em si mesmas e tenham força para inibir todos os atos infracionários. E que eu e você também saibamos validar os valores morais mínimos e máximos tão necessários à sobrevivência da sociedade.

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